terça-feira, 28 de julho de 2020

Aqui Onde Os Relógios Mal Respiram



















2008-2012

1.

Nada que dizer
Conspirar apenas
Contra o branco
Inerte do papel


2.

Entardecer, um rumor vegetal    
Oscilar de céu em céu, aclarar o breu
Flutuar entre as aves, fugazes entraves
Tarde de mais para o que houver a dizer
Cedo de mais para o que havia a fazer
Vaguear de ar em ar, argumentar para quê
Os ciprestes perfilham o meu ideário
E difundem o silencioso manifesto
Com movimentos de folhas mortas


3.

O olhar fixo
No metal das luas
A língua rubra
Intensa cor
Ouvindo em vão
Um ritmo cão
Ganindo em paz
Nas sombras nuas

O olhar retinto
Das ébrias noites
O gesto extinto
Os sons, açoites


4.

O pintor e a sombra
Irmãos inseparáveis
Prisioneiros atentos
Dos dias dispensáveis
Teme, treme, arrepia-te
Poderás encontrá-los
Nos caminhos desolados
Nos pensamentos naufragados
O pintor e a sombra
Desígnios Indecifráveis
No fio de tinta sangue
Tangente à corrente
Imune à torrente
Deforma ou enforma
A serpente dos dias


5.

A mente desmente
O que sente é ausente
O que sente
Que sente
É ausente
Ausente
Sente
Ente
te


6.

Da janela surda
Os sussurrantes brilhos
Vêm dissipar                                 
Pensamentos encurralados
Ornamentos ensimesmados
Em si, em mi, sem pó

Não há acordes
Na relação impura
Os dons reverberantes
Apenas amealham sossegos
Para que tarde de mais
Se trace a geometria do devir


7.

Pessoas, sim
Docemente infelizes
Como corpos, corações
Flores mágicas
Olhos inabitados
Os dois tiranos


8.

Ela, a pequena morte
Por detrás dos roseirais
Besta de fabulosa elegância
Chorava a eternidade
Com lágrimas quentes
E banhava, negligente
Os querubins de voz grossa


9.

Assinalar
Formalmente
Facto: a esperança
Já não mora aqui
Foi roubada
Há séculos.
Responsáveis
Demasiados
Pecadores
De sapatos luzidios


10.

Temperança.
Urge ouvir as ondas
A lembrança
O sinal ausente,
Porque a mente
Mente


11.

Da mente
Eu sei os trilhos
Sarilhos
Não há retorno
Enquanto a paz
Jorrando se esvai
E trai o que sai
Impuro da alma
Que a calma
Se espera da noite
O incauto se afoite
Que a trama não poupa
Quem ama
Reclama da voz
Que não diz
Mas oculta e insulta
Quem não pensa
O que quer


12.

Ouvi dizer que o ar o levou
A linha sinistra abriu
O rasto da espera quebrou
O cuspo da morte ouviu
O silvo da hora raspou

Ouvi dizer que o mar o cantou
Na noite sisuda
A lua trombuda gozou
Como se nada esperasse
Mais uma alma roubada
Para nada arrumada
Um ponto final cravou


(Boato sobre a morte de um pintor)


13.

Pelas memórias do derradeiro verão
Ecoam luminosos os teus passos
Nas ondas e reflexos das flores
Imunes aos ritmos devassos
Estranhos fulgores, amores tardios
Tão frios, gemem e tremem nos rios
Sem foz, que fado atroz faz troar
O desejo de guitarras caladas?


14.

As casas sem asas perduram no limbo
Até que as almas perdoem os danos
Enganos que se escondem nos vãos
Das escadas lavadas com gritos
Irmãos decadentes, aflitos, ausentes


15.

As janelas esperam
O morno retorno
Dos filhos desditos
Que sempre perdoam

As janelas atentas
Escutam os ecos
Do norte e espreitam
A sorte que tarda

As janelas brilhantes
Cansadas, cessantes
Acalmam as vagas
Da luz que não arde


16.

No mais fundo da tua superfície
Cores lentas iluminam as nuvens
Que empurram sem culpa
O desnorte dos ventos lamentos
Montados nas bestas polares

Ouvi dizer que o mensageiro morreu
Entre os espaços de espaço nenhum
Que não era só um, os outros perdeu
E na espera teimosa insistiu em pintar

De cores lentas o mar e de azul aclarar
As ideias daninhas, fininhas, mesquinhas
Que mataram as outras no cimo das caves
Entraves para sempre marcaram as faces

E agora que se erguem as saídas vedadas 
Em tudo lembradas e por nada zangadas
A mensagem perdida nunca entendida
Repousa ofendida pelas mãos e pelos nãos


17.

Nas vigas apodrecidas do tempo
A vaga opaca de luz não seduz
Jamais quem esqueceu que a noite
Se mantém nos cantos do peito
Na esquerda ligeira da alma


18.

Os ventos nus
Vieram mansos
Com a tormenta das perguntas
Nos lábios crus
Sem resposta
Adormeceram sem dano
Banindo os fluidos da razão


19.

O pequeno verme negro
Resistiu à neve imberbe
Que se lançou sem culpa
Sobre o corpo perene.
Assim contaram os velhos
Que o verme infame
A coisa negra, o vexame
Permaneceu intacto
Nos corações permeáveis


20.

Os olhos, silenciosos
Como árvores sombrias
Perscrutam o ar
Parecem querer ensinar
Um caminho qualquer, singular
O percurso sinistro: amar


21.

Máquina, táctica, enfática
Marginal como um animal
Fluidos percorrem circuitos
Intuitos perdidos sem pejo


22.

Máquinas números, dormentes
Indecentes, dementes, descrentes
Máquinas mortas, minas de luz
Às vezes retortas destilam os medos

Desvendam segredos, degredos
De todos aqueles que cedem                                                   
À tara de ouvir e sentir outra coisa
Que não o que cabe na alma


23.

Máquinas fálicas, itálicas
Analógicas, lógicas, fóbicas
Botões, anões, os cabrões
Emperram, às vezes introduzem
Retiram, suspiram, esmurram, ai!
Que nefasto, estou farto de tudo
O que é maquinal, afinal
Já não há espaço de sobra
Para as curvas do pensamento


24.

Sentei-me ali
Estrugindo uma ideia
Sentindo, ouvindo
A luz tecida
As mágoas
Recentes
Negras, danadas
Lançam a dor
Nos panos tingidos
Que das mãos
Fugidias se evadem

Sentei-me ali
Crente no que não há
A contar ectoplasmas
Miasmas, fantasmas
“Um raio de luz
Na casa assombrada”
Um tudo, um nada



25.

Naquele vão de escada
Esconde-se o Ser
Pressenti-o ao subir
Um estalido, um bramido
Sentido, fendido no ar
Eu sei que está lá
E que lá continuará
Entre os tempos contados
Em falso lançados
Às amigas urtigas


26.

Um bafo de sombra
Um pedaço de escombro
Vergou-se a meus pés
Não sei que figura
Já nem a conheço
E sei que mereço esquecer
A meu ver, tudo passa
“avec le temps”

Um hálito de luz
Esgueira-se pela porta entreaberta
O tempo suspenso, tão denso
Respira, transpira
Alerta, de olhar excitado
Pressente o que esconde
O lado de traz, o fado fugaz de antanho

Todas as vozes, todos os cantos
Parecem estranhos, dir-se-ia que um muro
Ladeia a estrada sem rumo


27.

Espreme a borbulha
Fagulha acesa no rosto
O rasto da sorte
A dúzia dos anos
Aviva o intenso desnorte
O desejo aéreo, etéreo
Que a sul tem morada
E nada, já nada produz


28.

Ando, flutuo, esvoaço
Pelas cidades ocultas da cidade
Montado na luz tremida
Levado pela mão estendida da memória
Litíase caótica, montureira de nada

Estreito, espreito o suspeito
Por detrás das casas sem laços
Entre elas só há embaraços de gente
Dormente, que não sabe se sente
Mas entende que tudo tem fim

Salto, calco, recalco
Subo colinas no fundo
Quero saber se ainda existo
Entre os braços do mar eterno
Esse que já não vejo, apenas oiço
Música, o puzzle da alma

Avanço, não danço, caio em falso
Na rua, pútrida, exangue
Que não corre, porém, escorre misérias
No tempo, no espaço sem cruz
Ficarei para sempre pregado


29.

Atormentado
Pelas emanações do mundo
Gordurosas percepções
Ficou no topo
Da esquelética árvore
Contemplou
Os inesperados abusos dos homens
Sob o olhar atento do ciclope
Já torpe, lento, sem tempo
O desalmado já não desce
Para nos confidenciar esperanças
Somos nós agora
Que lhe trepamos as tranças
Da fé, pois é, tome o seu café
E cale-se!


30.

Escavar, escavar
Talvez se achem flores
No mais fundo dos fundos
Escavar, quem sabe talvez
Se achem outros mundos a pique
Alguém que me explique
O sentido do tempo
O lugar deste espaço


31.

Aqui, onde os relógios mal respiram
Despertam as promessas enfadonhas
Desvanecem as nuvens concretas
Recordo ideias abstractas, inatas.
Insisto no voo circular das mágoas
Invisíveis aos corações magros

Aqui, onde os relógios mal respiram
Exaltado pelas palavras acesas
Dos que não escutam as almas
Ouço os teus passos em sobressalto
Como um suspiro inesperado
Depois dos longos silêncios

Aqui onde os relógios mal respiram
Revelo mil gestos condenados
Sob as nuvens órfãs e amadas
Tempestades da mente sugadas
E espero, e repouso no horizonte
Aguardo uma fresta, uma estrada



32.

Calado, voraz
Esquizotímico
A mordaça
O químico
A consciência
Perdura
A aventura
É a pura razão
Que diz não


33.

Quando o pensamento se faz palavra
Enferma já de fatal vício, o dos palradores
Atiçadores da inconsequência, demência
Cadência inútil das vibrações vocais
E outras que tais, sabemos nós bem
Que a acção se faz num recôndito lugar imóvel
No silêncio do génio omnisciente. Cuidado!
O mudo talvez invente um mundo melhor

Aqui Onde Os Relógios Mal Respiram

2008-2012